O Escalonamento da Violência Contra a Mulher e a Evolução da Legislação Brasileira: Uma Análise Crítica

A trajetória da legislação brasileira sobre violência contra a mulher revela uma complexa interação entre as normas legais e a evolução das concepções sociais sobre gênero e violência. Desde o período colonial, a forma como o direito brasileiro abordou a mulher e os crimes cometidos contra ela refletiu uma profunda visão patriarcal, frequentemente marginalizando e desconsiderando a seriedade do sofrimento feminino. Este artigo explora a linha do tempo das leis brasileiras relacionadas à violência contra a mulher, oferecendo uma análise crítica das mudanças e das persistentes lacunas na proteção legal.

Inicialmente, a violência contra a mulher pode ser notada de maneira institucionalizada, desde o início da legislação brasileira, representado pelas Ordenações Filipinas (1603-1830), que evidencia uma abordagem profundamente patriarcal. Durante quase 228 anos, essas leis tratavam a mulher como uma espécie propriedade a ser protegida para garantir seu valor no mercado matrimonial, e não como uma vítima a ser defendida. Assim, se um homem entrasse na casa de uma mulher “honesta” para manter relações sexuais, a legislação permitia que ele evitasse a punição se posteriormente se casasse com ela. Esse tratamento revela uma preocupação primordial com a perda de valor de mercado da mulher, e não com a sua integridade e dignidade pessoais. A mesma lógica se manteve durante Código Criminal do Império (1830), mas com nuances que aprofundaram a desigualdade. A legislação penalizava o defloramento de uma mulher virgem menor de dezessete anos, mas se o casamento ocorresse, a pena era isenta. Essa prática sublinhava a ideia de que o valor da mulher estava intrinsecamente ligado ao seu status moral e à possibilidade de um casamento. O tratamento diferenciado entre mulheres “honestas” e prostitutas reforçava a ideia de que o sofrimento das mulheres públicas era menos relevante, refletindo um preconceito profundo e uma visão de menos valor para estas últimas.

A continuidade dessa visão se manifestou também no Código Penal de 1890, que novamente diferenciava o tratamento das vítimas com base em sua “honestidade”. Estuprar uma mulher “honesta” resultava em penas que variavam de 1 a 6 anos, enquanto o mesmo crime contra uma mulher pública resultava em penas muito menores, de 6 meses a 2 anos. A persistência dessa distinção sublinhava uma discriminação legal e moral que diminuía a gravidade do sofrimento das mulheres que não se encaixavam no padrão de “honestidade” imposto pela sociedade.

Com o Código Penal de 1940, utilizado até os dias de hoje, embora houvesse uma tentativa de sistematizar e codificar melhor os crimes sexuais, ainda havia uma divisão significativa entre estupro e atentado violento ao pudor, e uma consideração do comportamento da vítima na determinação da pena. A legislação continuava a refletir preconceitos ao considerar o comportamento da vítima, o que muitas vezes resultava em injustiças, ao permitir que o comportamento da mulher influenciasse a gravidade da punição ao agressor.

A partir de 2005, a legislação brasileira começou a refletir mudanças significativas na proteção das mulheres, mesmo que ainda se encontrem, no Código Penal Atual, artigos extremamente problemáticos de cunho machista e discriminatório. Diversas leis foram proferidas visando o preenchimento de lacunas preconceituosas e promover maior amplitude à proteção da mulher na sociedade atual, levando em conta fatores como as novas mudanças tecnológicas no cotidiano. A Lei 11.106/05, por exemplo, foi um marco ao remover a figura da “mulher honesta” do Código Penal, reconhecendo que a violência sexual não deve ser mitigada com base no status moral da vítima. Essa mudança foi acompanhada pela abolição da extinção da punibilidade pelo casamento, um avanço importante que buscou garantir que o casamento não fosse uma forma de escape para os agressores.

A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), no mesmo sentido, estabeleceu um sistema mais robusto de proteção contra a violência doméstica, introduzindo medidas protetivas e criando uma rede de apoio para as vítimas. Apesar dos avanços significativos, a implementação efetiva da Lei Maria da Penha ainda enfrenta desafios substanciais, e a violência doméstica continua a ser um problema grave e recorrente no Brasil.

As leis subsequentes, como a Lei 13.104/15, que tipifica o feminicídio como crime hediondo, e a Lei 13.718/18, que aborda a divulgação não autorizada de cenas de estupro e a importunação sexual, são tentativas de tratar crimes específicos e intensificar a proteção das mulheres. A Lei 14.321/22, que trata da violência institucional de gênero, também é uma resposta a casos como o de Mariana Ferrer, evidenciando a necessidade de uma abordagem mais sensível e justa no sistema judicial.

Ainda assim, a legislação enfrenta desafios contínuos. Apesar das melhorias, a aplicação das leis e a percepção social da violência contra a mulher continuam a ser influenciadas por preconceitos e estereótipos de gênero. Leis como a Lei 14.188/21 e a Lei 14.192/21, que tratam da violência psicológica e política, são passos importantes, mas a transformação completa da proteção legal das mulheres no Brasil ainda requer uma abordagem crítica e contínua reforma.

Destarte, a análise da evolução da legislação brasileira sobre violência contra a mulher demonstra um progresso significativo na forma como a lei reconhece e trata esses crimes, mas também revela uma persistente luta contra estereótipos e preconceitos de gênero. A legislação tem avançado na direção de uma maior igualdade e proteção, mas é essencial que a sociedade e o sistema legal continuem a evoluir para garantir que todas as mulheres, independentemente de seu estilo de vida ou status social, sejam tratadas com dignidade. Somente através de um compromisso contínuo com a igualdade e a justiça será possível alcançar uma proteção efetiva e equitativa para todas as mulheres.

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